sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

os peixes do Eugénio

Chego às quatro da manhã com três murros no estômago a acordarem-me para um sono imenso que nunca alcanço antes das seis da manhã. Se mastigo pastilhas elásticas continuamente é apenas numa tentativa desprezível de disfarçar uma halitose de declarações inconfessáveis que me apodrecem nas entranhas.
Entregam-me na morgue, cortam-me a pele branca com um bisturi afiado enquanto me separam as entranhas para a esquerda e para a direita numa tentativa de me observarem directamente, sem subterfúgios, o estômago – um poeta libertino – que confessa em cartas perfumadas antigas, daquelas que ainda devo ter debaixo da cama em caixotes pretos por me faltar espaço para existir. Esburacam-me os órgãos, o estômago lança-se numa correria de declamações, sou toda eu palavras esdrúxulas gritadas, os médicos legistas socorrem-se de tampões numa tentativa de calarem o meu interior ensurdecedor e logo são corrompidos pela minha pele com erupções em código morse, todo um amor confesso sem pretensão. Se morro, desminto o desamor. Se morro, peço-te:

- Ensina-me a ser peixe.

Se morro, ensina-me a ser peixe, lembro-me do Eugénio, os teus olhos eram peixes verdes, se eu morro, peço-te:

- Ensina-me a ser peixe.

Se chegamos ao fim, que importa que seja tarde? Se tarde é já

- Ensina-me a ser peixe.

Compro umas barbatanas na loja dos disfarces, atiro-me a águas doces, garanto-te que aguento um minuto debaixo de água, por ti aguento mais um minuto debaixo de água com a promessa de que me socorres. Lembras-te de que me ensinarias a nadar à golfinho? Ainda nem tocamos a água.
São quatro da manhã, tenho o corpo empacotado numa vontade de te confessar que Janeiro muda as folhas, tenho argila na minha boca que hei-de modelar numa casa pequena, para te forçar a estar próximo. Se pego na argila transformo-a num peixe verde que colo nos meus olhos a lembrar-me outra vez do Eugénio e tu que nem aprecias a minha falsa intelectualidade materializada com citações frequentes. O meu cérebro é todo ele sinapses literárias, se ficares por perto decoro um livro para te declamar, não gostas de citações mas um livro inteiro há-de satisfazer-te, depois confesso-te: gosto de ti. Assim simples, como nas cruzes dos miúdos da escola que também escrevi, Queres namorar comigo? e uma margarida amarela a ajudar-me a resolver se te entrego o papel. Se eu morro

- Ensina-me a ser peixe verde nos olhos.

Depois entrego-te o papel Queres namorar comigo?, na esperança que uns olhos de peixes verdes te bastem.