terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

neve


Acusaram-me de voyeurismo quando aos dezassete anos permanecia horas no beiral da janela observando a rapariga ruiva que vivia num quarto paralelo ao meu. Frequentava a escola secundária do final da rua, pelo que esperava que a rapariga acendesse a luz e se vestisse no seu isolamento que eu não invadia, apesar da vontade da nudez, seguindo-a depois pela rua até ao portão da escola. Nesse momento, perdia-a para rapazes menos introvertidos e raparigas loiras de minissaia que riam com a boca aberta como grutas onde não me pretendia perder.

Olhou-me a primeira vez, num dia de inverno, recordo-me que era inverno porque o corpo ruivo esmagou-se no chão tingindo de um vermelho escarlate a neve, enquanto caía. Um tumulto de pessoas aproximaram-se do corpo, que também era meu, e profanaram-no com perdigotos demorados e palpites absurdos sobre quedas acidentais de elevadas alturas. Assomou-me a felicidade aos músculos quando, depois de removerem o corpo e as pessoas dispersarem, as casas regressaram à melancolia do quotidiano e já ninguém havia morrido, coloquei-me três frascos de amostras no bolso do casaco, dirigi-me à cozinha para encontrar uma colher que juntei aos frascos que tiritavam enquanto descia as escadas. Hoje apetecia-me correr as escadas numa ânsia de lhe chegar ao corpo. Ao aproximar-me da neve, com a sensação de novamente a perseguir, retirei os frascos dos bolsos e com a pequena colher recolhi pedaços de neve avermelhada que conservo no congelador.

Aproximo-me do congelador enquanto me lembro do verso de um poema de Amadeu Baptista que repeti solitário até memorizar: toca-me o sangue, peço-te que me toques o sangue. Toquei-lhe o sangue em juras, uni o sangue dela no meu indicador em promessas de continuidade. E, se lhe toco o sangue, abraço-lhe o corpo, debruçando-me no congelador num voyeurismo crescente. Às vezes a vidraça embacia, atravesso a rua pela janela e estamos novamente no inverno, desço as escadas para a rua deserta contente no segredo inalterável de que o meu amor vive em frascos de neve avermelhada.