Hoje é dia do meu 60º aniversário. Estou velho. De ontem
para hoje nenhuma mudança mas de repente os sessenta em cima das minhas peles e
as minhas rugas aprofundaram-se nos sssssssss feito cobra na pele. A minha cara
com duas cobras pequenas debaixo dos olhos. Liguei a televisão para me atazanar
o cérebro enquanto varro a casa porque vivo sozinho, nunca decidi casar, estava
à espera que aparecesse aquela pessoa, qualquer definição mais precisa não é
encontrada, ninguém me avisou que o amor bastava, que talvez casar por
dinheiro, sexo, medo de solidão bastava. Tendo tendência a agarrar-me a
idealismos, esperei sempre pela exclusividade, por desejar a exclusividade como
se me fosse intrínseca, o que falhou e agora encontro nos ssssssessenta anos de
idade sozinho numa casa poeirenta com meia dúzia de livros e uma televisão que
me abafa as obsessões com vozes histéricas em programas matinais que
sucessivamente me aproximam da caçadeira atrás da porta do quarto.
Abro a porta de casa e sento-me como ontem e hoje e amanhã
no alpendre da casa. Às onze horas passará a Filomena com o seu ramo de flores
para enfeitar a campa dos pais. Quando éramos crianças dava a mão à Filomena na
escola e arrebitava-lhe a saia. Entretanto a Filomena ganhou uns caroços que
germinaram e me incomodavam porque o pénis subitamente erecto era embaraçoso, então
restringia-me a observá-la nos seus vestidos primaveris e o seu cabelo loiro
pousado nos ombros a encaixotar o rosto pálido onde quis dar beijos contínuos até
enrubescer. E, no entanto, a minha timidez cessava com as tentativas patéticas das
companheiras de carteira que me atiçavam com pedidos de beijos aos quais acedia
sempre com fingido desinteresse. Via-me impedido de rejeitar pedidos femininos,
normas de etiqueta provavelmente aprendidas com o meu pai que nos intervalos
dos jogos de futebol aproveitava a minha mãe distraída e enfiava-se nos quartos
das vizinhas que se riam porque o sexo adúltero deve fazer cócegas na consciência.
A única vez em que beijei a Filomena fi-lo por imposição dos colegas que
estranhando o meu afastamento me insultavam com palavras de amor e, como
adolescente que se preze não ama, agucei-me de coragem e finalmente calei os
rumores. A boca sabia a mel. A mãe da Filomena todos os dias barrava pães com
mel que eu agora provava nos lábios dela.
São onze horas. Espero que a Filomena me dirija o bom dia
severo e se encaminhe para o cemitério. Suspeito que estranha a minha presença
semanal à mesma hora no alpendre. A Filomena já não tem cabelos loiros nem
poderia arregaçar-lhe as saias nem os vestidos primaveris. Casou com o dono do
talho da freguesia, por isso carne em casa não deverá faltar. Os filhos não são
bonitos e os netos gritam e fazem birras. Podia ter casado com a Filomena mas
depois já não precisava da televisão para me espantar o silêncio e eu gosto que
as vozes estridentes dos apresentadores dos programas da manhã me ateiem a vontade
de alcançar a caçadeira atrás da porta do quarto.