quinta-feira, 5 de julho de 2012

Filomena


Hoje é dia do meu 60º aniversário. Estou velho. De ontem para hoje nenhuma mudança mas de repente os sessenta em cima das minhas peles e as minhas rugas aprofundaram-se nos sssssssss feito cobra na pele. A minha cara com duas cobras pequenas debaixo dos olhos. Liguei a televisão para me atazanar o cérebro enquanto varro a casa porque vivo sozinho, nunca decidi casar, estava à espera que aparecesse aquela pessoa, qualquer definição mais precisa não é encontrada, ninguém me avisou que o amor bastava, que talvez casar por dinheiro, sexo, medo de solidão bastava. Tendo tendência a agarrar-me a idealismos, esperei sempre pela exclusividade, por desejar a exclusividade como se me fosse intrínseca, o que falhou e agora encontro nos ssssssessenta anos de idade sozinho numa casa poeirenta com meia dúzia de livros e uma televisão que me abafa as obsessões com vozes histéricas em programas matinais que sucessivamente me aproximam da caçadeira atrás da porta do quarto.

Abro a porta de casa e sento-me como ontem e hoje e amanhã no alpendre da casa. Às onze horas passará a Filomena com o seu ramo de flores para enfeitar a campa dos pais. Quando éramos crianças dava a mão à Filomena na escola e arrebitava-lhe a saia. Entretanto a Filomena ganhou uns caroços que germinaram e me incomodavam porque o pénis subitamente erecto era embaraçoso, então restringia-me a observá-la nos seus vestidos primaveris e o seu cabelo loiro pousado nos ombros a encaixotar o rosto pálido onde quis dar beijos contínuos até enrubescer. E, no entanto, a minha timidez cessava com as tentativas patéticas das companheiras de carteira que me atiçavam com pedidos de beijos aos quais acedia sempre com fingido desinteresse. Via-me impedido de rejeitar pedidos femininos, normas de etiqueta provavelmente aprendidas com o meu pai que nos intervalos dos jogos de futebol aproveitava a minha mãe distraída e enfiava-se nos quartos das vizinhas que se riam porque o sexo adúltero deve fazer cócegas na consciência. A única vez em que beijei a Filomena fi-lo por imposição dos colegas que estranhando o meu afastamento me insultavam com palavras de amor e, como adolescente que se preze não ama, agucei-me de coragem e finalmente calei os rumores. A boca sabia a mel. A mãe da Filomena todos os dias barrava pães com mel que eu agora provava nos lábios dela.

São onze horas. Espero que a Filomena me dirija o bom dia severo e se encaminhe para o cemitério. Suspeito que estranha a minha presença semanal à mesma hora no alpendre. A Filomena já não tem cabelos loiros nem poderia arregaçar-lhe as saias nem os vestidos primaveris. Casou com o dono do talho da freguesia, por isso carne em casa não deverá faltar. Os filhos não são bonitos e os netos gritam e fazem birras. Podia ter casado com a Filomena mas depois já não precisava da televisão para me espantar o silêncio e eu gosto que as vozes estridentes dos apresentadores dos programas da manhã me ateiem a vontade de alcançar a caçadeira atrás da porta do quarto.