Margarida é uma mulher meticulosa. Chega a casa às 17:20,
depois de caminhar dez minutos entre o emprego no tribunal e a sua casa num
trajecto lapidar apesar das alternativas mais cómodas em dias chuvosos ou do
tráfego endiabrante em hora de ponta. Entrega o casaco ao chapeleiro, os
sapatos colocados por cores e função na sapateira, as meias a percorrem a casa
imaculadamente limpa com as chaves previamente largadas no hall de entrada. A organização
extrema expulsava os animais, pelo que nem uma aranha parasita se encontrava
entre os eletrodomésticos. Margarida mantinha a sua vida num continuum de
previsibilidade, então quando o seu mais frequente cliente se libertou dos
escrúpulos pedindo-a em namoro e lhe atirou para as goelas uma entropia incompensável,
ela apenas rejeitou o pedido daquele homem bonito que a tornava numa barata
desassossegada. Dirigiu-se para casa ao fim do dia certa de não voltar ao
tribunal, limpou as divisões onde encontrava resquícios de um pó observável apenas
à sua obsessão, colocou o veneno dos caracóis que lhe comiam as couves no frasco dos
comprimidos benuron, que lhe aliviavam as dores de costas e, face às suas dores
comuns, entregou-se aos comprimidos enquanto distraidamente lia as revistas fúteis
que a lembravam do que repudiava por não possuir.