terça-feira, 12 de agosto de 2014

Irmandade



O ribeiro. Quebraste a minha bicicleta roxa. Rachei-te a cabeça com uma enxada enquanto jardinávamos. Corri pelas estradas, sufocada, com a certeza de te ter matado. Vinte ou trinta pontos, indestrutível. Penduraste-te na varanda. O avô que não podia correr mais. A fotografia no quarto da mãe. Só sobro eu, foda-se. Os pêlos do teu cu que mostravas para arreliar. As saudades de te dar a mão a caminho da escola. A fotografia do Carnaval vestida de cigana e tu de bigode e plástico a representar algo indecifrável. Os mergulhos no Algarve. A porrada que dei ao Hélder por bater-te. O alcatrão que se colava nas solas. As vezes em que te pedia para verificares se os meus perseguidores estavam no caminho, enquanto me escondia, e tu ias, mais novo, galante. As viagens a Viana do Castelo. O dinheiro que juntamos para os leprosos. As corridas. O futebol em que eras bestial e eu jogava por ti. O fixe que eu queria ser para que gostasses de mim. As filmagens para a faculdade. Uma perna maior do que a outra e que partiste. Os banhos no sofá. O bom que eras. O moreno quase preto da tua pele. A tua vaidade a chatear-me nos domingos à tarde enquanto te passeavas no espelho. O teu descuido. As vezes em que fingias ser gay. O amigos todos que nunca deixaste, os nenhuns que mantenho. As lutas de vassouras. Queimei a perna ao fugir. Os pretextos que inventava para falar-te. A tua idiotice. Uma saudade que rebenta. O meu irmão, não quis irmãos, vieste tu. Um nenuco que comia bananas. A mãe ao penduro da varanda ao teu colo. O meu corpo fraco. Já não te sirvo. As tuas costas tortas. Amanhã: futebolista, esgrimista, professor de educação física, irmão e filho e namorado e tio e primo e afilhado e o pequenito de bigode, com ar travesso, a camisola castanha, feia, na fotografia da minha franja mal cortada, vergonha que tinha, no fundo do álbum, a desejar que a minha cara ficasse ali colada à tua, feios, no final do álbum, para sempre.