O ribeiro. Quebraste a minha bicicleta roxa. Rachei-te a
cabeça com uma enxada enquanto jardinávamos. Corri pelas estradas, sufocada,
com a certeza de te ter matado. Vinte ou trinta pontos, indestrutível.
Penduraste-te na varanda. O avô que não podia correr mais. A fotografia no
quarto da mãe. Só sobro eu, foda-se. Os pêlos do teu cu que mostravas para
arreliar. As saudades de te dar a mão a caminho da escola. A fotografia do
Carnaval vestida de cigana e tu de bigode e plástico a representar algo indecifrável.
Os mergulhos no Algarve. A porrada que dei ao Hélder por bater-te. O alcatrão que
se colava nas solas. As vezes em que te pedia para verificares se os meus perseguidores
estavam no caminho, enquanto me escondia, e tu ias, mais novo, galante. As
viagens a Viana do Castelo. O dinheiro que juntamos para os leprosos. As corridas.
O futebol em que eras bestial e eu jogava por ti. O fixe que eu queria ser para
que gostasses de mim. As filmagens para a faculdade. Uma perna maior do que a
outra e que partiste. Os banhos no sofá. O bom que eras. O moreno quase preto
da tua pele. A tua vaidade a chatear-me nos domingos à tarde enquanto te
passeavas no espelho. O teu descuido. As vezes em que fingias ser gay. O
amigos todos que nunca deixaste, os nenhuns que mantenho. As lutas de
vassouras. Queimei a perna ao fugir. Os pretextos que inventava para falar-te.
A tua idiotice. Uma saudade que rebenta. O meu irmão, não quis irmãos, vieste
tu. Um nenuco que comia bananas. A mãe ao penduro da varanda ao teu colo. O meu
corpo fraco. Já não te sirvo. As tuas costas tortas. Amanhã: futebolista,
esgrimista, professor de educação física, irmão e filho e namorado e tio e
primo e afilhado e o pequenito de bigode, com ar travesso, a camisola castanha,
feia, na fotografia da minha franja mal cortada, vergonha que tinha, no fundo
do álbum, a desejar que a minha cara ficasse ali colada à tua, feios, no final
do álbum, para sempre.