quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A José Saramago

Morreste um ano antes de começar o meu compasso de melancolia pela tua falta. São quase seis horas da manhã e enquanto deambulava pela noite surgiu-me a tua voz pausada. Os psicanalistas atribuiriam a minha ternura a uma transferência e, no entanto, a tua perda arrasta-se como uma falha inteira. São seis da manhã, se não durmo é porque a cama está hospedada por um plástico negro onde desfia o teu corpo velho enquanto a tua mente oxigenada como guelras vermelhas no peixe fresco paira no meu cérebro esquizofrénico. Se me distraio estás vivo e a minha ternura acomoda-se em distracções.
As tuas cinzas debaixo de uma pedra do jardim. Os teus livros na minha prateleira a acalmarem-me a solidão. Estás morto e comunicas porque existem livros escritos onde me debruço e me desvendas mistérios que finjo serem-me dirigidos. Creio que se ler mais uma página me ensinas a morrer e na página anterior o remédio da solidão e na anterior a esquivar-me das ruas desfeitas do meu peito aberto. Estás morto e eu não durmo na impossibilidade de retorno. Enchem-me o pensamento de frases banais dizendo que tudo quanto é iniciado necessariamente tem um término e talvez a morte termine no esquecimento. Existem tantos mortos duradouros. Enquanto não me largarem numa qualquer pedra de um qualquer jardim, nego-te o esquecimento e a finalização.
São seis e meia. Encontro-te amanhã, à mesma hora, na estante, na esperança de que me desensines as insónias.