domingo, 19 de fevereiro de 2012

grilos


Deitava-se com a janela aberta à espera dos grilos enquanto o marido dormia com a barriga a lembrar-lhe a cobra após engolir um elefante do principezinho, todo ele um tumor de vinte quilos, grávido de uma gordura imensa que lhe perturbava o sono. De vez em quando interrompia a respiração, a mulher suspeitava que a morte se aproximaria e a demorar-se, poderia facilitar-lhe o trabalho auxiliando o marido na transição com a almofada branca onde restos de baba de ontem ainda secavam. O marido era um charco de secreções avulsas.

Quando ainda suspeitava que as horas passariam vagarosas com a tristeza, desenhava a batom vermelho uma boca feliz, arregaçava os dentes como um canino raivoso enquanto movia os tachos e panelas da cozinha enquanto fingia inventar poções que a resgatariam da vida miserável. Os filhos corriam gordos como o marido, ela delgada e os filhos um retrato do pai gordo, detestava os filhos quase tanto como a gordura do marido que enchia as páginas de fotografias de casamentos. Um homem que se enchia de enchidos nos casamentos enquanto os delgados limpavam os beiços delicadamente a guardanapos no colo, comendo numa paciência de padre em horas de ceia.

À noite vingava-se da miséria, esperava que o marido adormecesse, abria a janela aspirando os grilos, enchia o quarto de música e deslizava pelo chão agilmente enquanto sentia no corpo mil mãos que lhe entrelaçavam a cintura fina. O corpo lambido enésimas vezes por línguas ardilosas. Aproximava-se dos lençóis subtilmente, encaixava na pequena vaga do seu corpo repetido, depositava a cabeça na almofada e traía o marido com homens cujos rostos desconhecia, gemia e contorcia-se. O marido a morrer à sua direita enquanto o traía, permitia-lhe libertinagens sem pudor que censurava quando solicitadas e acordava revigorada, sedenta do término do dia ainda começado, com a certeza de que no próximo casamento ganharia coragem para solicitar um solteiro para a pista de dança enquanto o marido se empanturraria com frango frito limpando os beiços com as mangas e o seu corpo seria conduzido da pista para a cama, sem que o marido levantasse os olhos do prato.